sábado, 25 de dezembro de 2010

GAMÃO COM O DIABO

    Noite de Natal.
    Me acostumando à uma solidão forçada, tento ludibriar o tempo com pequenas ocupações. Um retoque na tela inacabada da parede do quarto, as roupas por estender, uma louça que provavelvemte precise e está lá suja, no meio de todas. Enfim, tentando matar um tempo, que mata, só por ser e agir como tempo.Café, pausa, belo céu do meu terceiro andar. As luzes, hoje de velas. O som ligado para abafar as vozes e risos de crianças e pessoas que festejam ao meu redor,na mesa pequena, um tabuleiro de xadrez, com uma partida iniciada, parado, empoeirado até. Não me lembro de quem seria a próxima jogada. Se das brancas ou pretas. Penso na nescessidade de marcar cada jogada. Quando eu fizer um movimento com  determinada peça, deixar um indício para próxima jogada. No xadrez para se  jogar sozinho, revezando com você mesmo , aconselho que não seja um jogo rápido. Pode durar meses. Não tem graça o jogo ser dinâmico com você mesmo.Descartei a possibilidade de tentar lembrar de quem era a vez, e abri o lindo tabuleiro de gamão que me deram no meu último aniversário. Há seis meses, um dia depois da comemoração do último santo das festas Juninas, no sexto mês de todo ano.
    Tabuleiro lindo, toque aveludado, vermelho e negro em arabescos rebuscados construindo os triângulos longos, que quase se encontram no centro. Fiquei um tempo admirando aquela obra de arte, que eu e meu filho já tínhamos cobiçado numa loja, e que no meu aniversário foi me dado por queridas amigas. Arrumei as peças, fui buscar uma deliciosa xícara de barro gigante com água deliciosamente fresca de minha moringa de barro , ri sozinho, eu e meus gostos de vovô. Voltei, me acomodei, acendi outro cigarro e joguei o primeiro dado. Sortudas essas peças brancas, seis! Lance seguinte , segundo dado , seis.Ok vamos novamente. Primeiro dado, peças brancas ,um.Segundo dado, peças negras, seis. Peças negras começam. Logo no primeiro lance, uma dobradinha de seis,que no gamão te garante dupla jogada, independente do número, se for igual, nos dois dados.Joguei de novo os dados e novamente os dados cairam repetindo o número seis. Achei até hilária aquela competição, tentando ser criativo com as movimentações das peças brancas. Próximo lance, meu telefone toca.
    Ok , meus saldo está abaixo de trá, lá, lá. Desligo. Volto pra jogar.Cadê os dados?
    Claro que, eu, como faço com tudo, devo ter colocado os dados no lugar mais inusitado do planeta durante , ou no caminho do atendimento telefônico, raiva dessa operadora... Bom os dados, procura.Caramba quando sou criativo sou mesmo! Onde enfiei esses dados?
    Ok Vamos lá São Longuinho me devolve os dados, dou três pulinhos. Melhor dou seis, três pra cada dado!
    Mal acabei de falar isso um estouro se fez numa das velas que queimavam, um cheiro forte me fez ficar tonto e na mesma hora lembrei que Longuinho, o Santo, é Longinus, o soldado romano que desferiu com a lança o abdômen de Cristo durante a cruxificação.
    A tontura aumentou, enquanto me sentava ouvi uma risada, minha risada. Um calafrio percorreu minha espinha, subiu pela nuca, arrepiou todos os pêlos de meu corpo e quando vi, não ousei clamar o nome de ninguém. Eu estava sentado em minha frente vestido de negro e sorrindo pra mim, com os olhos mais negros que eu já havia visto. Pensei, "o que é isso?", olhei ao redor para conferir se continuava em minha sala. Nada havia mudado. Tudo no lugar, e mesmo assim voltando os olhos, eu estava lá na minha frente, com o olhar mais maléfico e desvairado que vi em toda minha vida.   
   _ Não sou você!  Disse em alto, bom e amedrontante som a criatura em minha frente."Quem diabos é vc?", pensei.
   _ Isso mesmo.Disse ele._ Se preferir, sim já me chamaram assim.Sou o Diabo.
    Levantei rindo e sem me tocar a criatura fez o gesto de um tapa no ar, o que senti no rosto foi pior que o tapa de cinco mãos queimando,cai no chão desconcertado, tendo noção somente nesse instante que era real. Quando fui me levantar levei outro golpe, dado pelo ar,e uma pressão manteve minha cara colada ao chão, como se alguém estivesse pisando no meu rosto. Quando vejo, a criatura com meu corpo clonado, andava em minha direção, vi a ponta dos sapatos finos, e em seguida ele bem próximo de mim, olhando no fundo dos meus olhos, disse:  
    _Vamos continuar o jogo!
    Somente nesse instante o demônio me tocou, me agarrou pela nuca como se eu fosse um boneco, me levantando no ar acima de sua própria altura, que no caso, era minha própria altura. Dos olhos, fagulhas negras chispavam. Os dedos da criatura infernal, cravando na minha carne, queimando como gelo. Pensei_ "Deus". O diabo gargalhou, e  gritou com hálito de sangue no meu rosto:
    _DEUS!? Nem ele vai te ajudar agora!.
     Me jogou, no sofá. Não me movi, ele tambem não, mas no seguinte segundo ele estava ao meu lado, estendendo as mãos, a voz dele , mais alta até, gritou somente em minha mente . Os lábios dele, já não se moviam:
    PEGUE!, ordenou a voz dentro de mim e estendeu-me os dados, vermelhos em brasa viva, peguei sem exitação. Estava apavorado demais pra não obedecer, os dados queimaram minhas mãos, joguei. A força que me pressionava sentado parou de agir, como se ele tivesse me soltado, mesmo estando ja sentado do outro lado da sala, em minha frente.
    O jogo ia prosseguir mesmo, conclui.Ao terminar de mover minhas peças ao olhar para o demônio ele já possuia outro rosto, um rosto que eu não conhecia mas não me era de todo estranho, o rosto de um velho, que eu reconhecia de algum lugar.Não me detive nisso, resolvi me concentrar no jogo.A cada lance, via que ele se sentia mais e mais satisfeito, depois de algum tempo ele me perguntou alto gritando em minha mente?
    _Sabe o que está em jogo?
    _Minha alma? Perguntei eu.  
    Ele garagalhou de novo e indicou com o olhar que a próxima jogada era minha enquandto eu via sinistramente as peças negras se movendo sozinha no tabuleiro,continuei silencioso, tendo a certeza que o que estávamos jogando em definitivo, era mesmo minha alma.
    A cada vez que sentia que a sorte estava em companhia dele e não minha uma nova jogada virava a situação e recuperava terreno , conseguindo assim,levar todas minhas peças pro espaço final do tabuleiro. Ele impassivel esperou que lance a lance eu vencesse aliviado e ao mesmo tempo sentindo um temor por não saber o que me aguardava no término da tenebrosa partida. Venci.
    Um golpe lançou o tabuleiro para longe, e algo me içou no ar, como se eu fosse uma roupa num cabide, ele não estava mais lá mas sentia um vento forte ao meu redor me afogando, num fedor insuportável, a voz do demônio falou em toda a sala:
    _Tua alma já tínhamos há muito tempo, hoje jogamos tua miserável vida, Se eu ganhasse, bem, iríamos nos conhecer melhor. Mas como vc ganhou teu prêmio é esse, viverás, muito. E verás muito. E quando pedir para partir, ainda vai ser deixado e esquecido no mundo, que pra você, é o pior inferno. Não te concedo a honra de me acompanhar.
     Feliz Natal à todos.